Kenard Kruel em leitura de História do Piauí.
A história é como uma procissão
Claudete Maria Miranda Dias*
A história é como uma procissão: pode ser contada a partir do lugar onde se está na procissão. É a mesma procissão, vista de lugares e pontos de vista diferentes, havendo então distintas histórias, abordagens, enfoques, olhares, visões, interpretações sobre um mesmo assunto. Na vida é assim, contamos e escutamos histórias diferentes. O interesse do pesquisador tem a ver com a sua visão de mundo e com sua bagagem de leituras e pesquisas.
A história do Piauí ainda na atual contemporaneidade, em pleno século XXI, permanece desconhecida para a maioria da população. A falta livros de história, gera enormes lacunas no ensino, seja básico ou superior, e na formação da identidade e da cidadania. Falta muito a ser pesquisado, divulgado, produzido e preservado nas mais diversas áreas do conhecimento científico e tecnológico. E mesmo considerando o avanço da produção histórica atual, durante muito tempo, fatos importantes da história do Piauí ficaram sob os escombros da memória.
Costumo dizer que é apenas a partir dos anos 1970 que a história do Piauí passa a ser mais pesquisada com mais sistemática e divulgada, bem como a Arqueologia e a Literatura. E com uma política de qualificação dos professores das Universidades em cursos de pós-graduação, que começou na década de 1980, resultou em inúmeras dissertações de Mestrado e teses de Doutorado e outras pesquisas, abandonando os tradicionais relatos históricos para investigar a escravidão, as lutas sociais, a religiosidade, a miséria e o cotidiano, a história das mulheres, o carnaval e da prostituição.
Em termos de memória histórica, o Piauí possui um dos arquivos públicos mais ricos do Brasil, devido ao seu acervo, composto de um manancial de fontes documentais manuscritas de vários períodos da história, dos séculos XVII ao XX, ainda intocados a espera de pesquisadores.
Pode-se dizer que este livro de História do Piauí, de Kenard Kruel e Gervásio Santos, soube aproveitar este rico manancial. Pode-se dizer também que o livro se propõe ser uma História Geral do Piauí. Organizado de forma distinta em duas partes, cada autor traça sua abordagem: a primeira parte mostra esta História, desde “os primórdios até a instalação da República”; e a segunda o autor monta uma narrativa biográfica dos governadores republicanos no Piauí, do primeiro até o atual. Uma proposta como esta supõe que os autores adotam a narrativa direta, simples e sucinta, para dar conta da delimitação que escolheram. Dessa forma o livro aborda fatos, acontecimentos, personagens e personalidades da historia do Piauí transmitindo as noções básicas e gerais da história política e econômica, fundamentais para o conhecimento de qualquer sociedade, e preenche uma lacuna na produção historiográfica piauiense.
Temas como o extermínio dos nativos durante a colonização, as discussões tradicionais como o desbravamento dos sertões de dentro, a criação da capitania de São José do Piauí, a escravidão, a educação, a participação do Piauí nas questões nacionais como o processo de independência e a proclamação da República, entre outros temas, são abordados, de forma bem objetiva, na primeira parte do livro, por Gervásio Santos, numa síntese de um longo período histórico, abrindo trilhas para outros interessados em pesquisar e aprofundar o conhecimento histórico.
A história da República no Brasil é marcada por movimentos sociais e ditaduras, de eleições fraudulentas ao coronelismo rural, de grandes nomes e líderes. É uma história de mais de cem anos contada pelo Kenard Kruel, na segunda parte deste livro, com um fôlego de quem tem pressa para tirar a história política do Piauí do anonimato. Para isto ele traça um perfil dos governadores republicanos dentro do contexto no qual estão inseridos com dados que identificam aspectos de destaque da vida política de cada governador. Muitos deles estão identificados por fotografias e documentos inéditos encontrados em acervos familiares, dando um perfil de uma parte da história política do Piauí.
Como historiadora, venho ao longo de minha carreira pesquisando a história social do Piauí, numa investigação voltada para as lutas sociais, como a guerra da colonização, que dizimou a população nativa do Piauí, bem como os movimentos sociais do século XIX, com destaque para a Balaiada, ainda hoje, 170 anos depois, muito pouco pesquisada e estudada.
Pode-se dizer que esta história se localiza do outro lado da história, vista das camadas populares o que quer dizer que se propõe a mostrar a história de homens e mulheres comuns em luta para se manter livre, como os nativos (índios), os escravos e a população livre que queria a independência do Brasil e se libertar da colonização portuguesa.
Pode-se dizer que é uma história que aborda outros aspectos, mas é a mesma história mostrada neste livro do Kenard Kruel e do Gervásio Santos. Só que estamos em lugares deferentes na procissão, por isto, mostramos a história de ângulos diferentes. O que não se pode mais é esconder que houve no Piauí durante a colonização uma guerra que despovoou toda a sua população nativa para dar lugar à sociedade escravista colonial, que a escravidão foi tão violenta como em todo o Brasil, que as lutas sociais deixaram marcas que os poderosos ainda hoje querem apagar, que a ditadura militar de 1964 praticamente não foi sentida porque ela já existia desde o século XIX, que a política republicana fortaleceu as oligarquias e coronéis, bem como não de pode esquecer que o Piauí é um dos estados brasileiros mais pobres, mas é onde se localiza os vestígios arqueológicos de povoamento mais antigo das Américas. Ou seja, o Piauí está inserido no mais amplo contexto da história e cultura brasileiras e que se recusa a continuar marginalizado.
Este livro cumpre esta tarefa importante e vem preencher uma lacuna por sistematizar de forma simples e direta, a História do Piauí.
Rio de Janeiro, 13 de Maio de 2009 – 121 anos da assinatura da Lei Áurea.
Claudete Maria Miranda Dias* Historiadora da Universidade Federal do Piauí/ Programa de Pós-graduação em História do Brasil. Mestra em História do Brasil. Doutora em História Social. Pós-doutora em História Cultural.